Gente feliz sem lágrimas

Duas irmãs da ilha Terceira pegaram na exploração agrícola do pai e transformaram-na num grupo industrial e empresarial cujos gelados únicos (e não só) começam a concentrar atenções em Lisboa. Na verdade, não são duas irmãs apenas: é uma família inteira, embora cada vez mais um matriarcado. Conheça a Quinta dos Açores: um sucesso tão óbvio que parecia impossível

A história podia começar assim: «Tão determinadas como atónitas perante a imobilidade da economia açoriana, duas irmãs da ilha Terceira concluíram as licenciaturas e decidiram criar os seus próprios empregos, pegando na exploração agrícola do pai e transformando-a num grupo industrial e empresarial cujos produtos, gelados à cabeça, já colecionam indefetíveis no continente e se preparam agora para conquistar o mundo.» Até certo ponto, seria verdade. Mas esqueceria uma personagem central na saga: Francisco Helvídio Barcelos, o lavrador de 60 anos com quem, na verdade, tudo começou.

Em 1977, Francisco Helvídio era apenas um pequeno funcionário público de Angra do Heroísmo, com o nono ano de escolaridade e escassas perspetivas de ascensão na administração da jovem autonomia açoriana. Mas arriscou comprar a lavoura ao sogro e investiu de imediato na exportação de gado para Lisboa. Não tardou a aventurar-se também na importação de melhores raças e exemplares, de barco (chegou a fretar um navio para transportar mil novilhas de uma vez) e até de avião (com recurso a uma companhia aérea angolana) – e em breve crescia como empresário, ao mesmo tempo que ia redecorando a própria paisagem açoriana.

O sucesso levou-o ao negócio da carne propriamente dito e daí à primeira empresa urbana: a Açorcarnes, fundada em 1997. Problema: não tinha filhos varões e, a prazo, o negócio estava condenado. Mas estaria mesmo? «Muitas vezes me disseram, no início da minha vida como lavrador, que tinha tido o azar de ter três filhas e nenhum rapaz para dar continuidade à minha vida profissional», contou no ano passado, ao longo do emocionado discurso de inauguração da Quinta dos Açores. «Foi a minha maior sorte. Atualmente, essas filhas são as minhas grandes parceiras. São os pilares de todo este projeto. Todos os dias a sua garra e o seu dinamismo me fazem acreditar no futuro.»

As raparigas são três: Telma, de 35 anos, engenheira zootécnica e finalista de medicina veterinária; Helga, de 32 anos, engenheira zootécnica; e Diana, de 26 anos, economista. A mais nova mantém-se para já por Lisboa, onde trabalha como consultora da Deloitte. As duas mais velhas concluíram a formação académica, durante a qual se destacaram pela obsessão de conhecer ao pormenor cada processo e cada técnica (são os professores da Universidade dos Açores que o dizem, orgulhosos) – e em pouco tempo começaram a estruturar aquilo que viria a constituir o primeiro grande case study da economia açoriana do século xxi e, em simultâneo, um segredo cada vez menos bem guardado a nível nacional e internacional, fruto de uma aposta cuidada na escolha de matérias-primas e tecnologia, de um investimento decidido na comunicação e no marketing e de um zelo evidente por dois princípios trazidos da infância, segundo exigência do pai: saber fazer para, então, sim, saber mandar fazer; e cultivar a gratidão para com colaboradores e parceiros.

O resultado está à vista. Por detrás das vidraças de um edifício de arquitetura contemporânea situado no Pico Redondo, à entrada de Angra do Heroísmo e com uma gloriosa vista sobre a Cidade Património Mundial e o seu encantador monte Brasil, escondem-se cerca de sessenta funcionários e os corações de cinco empresas diferentes: Francisco Helvídio Barcelos, centrada na produção de leite; Maria José Barcelos, dedicada à criação e engorda de animais; Pastagem Sociedade Agropecuária, dedicada ao gado da raça Limousine; Açorcarnes, uma agregadora de diferentes esforços de produção e comércio de carnes e produtos lácteos, com um braço no retalho e outro na restauração; e Quinta dos Açores, uma marca de alcance sobretudo turística, mas em torno da qual quase tudo, entretanto, passou a gravitar.

O investimento, desenhado em 2004 e levado finalmente à prática entre 2011 e 2012, foi de cerca de oito milhões de euros. Volume de faturação previsto para o primeiro ano: 13 milhões. E, porém, não é de números que esta história fala: é de estilo, de design, de qualidade – e, já agora, de paixão. Em um ano, não terá havido um só terceirense ou visitante da ilha Terceira que não tenha passado pela Quinta dos Açores, para provar os seus estupendos gelados (alguns deles feitos a partir dos sabores típicos das diferentes ilhas, como as donas-amélias da Terceira, as queijadas da Graciosa ou, em breve, as meloas de Santa Maria ou o gin tónico do Faial), comer os seus hambúrgueres ou fazer compras domésticas no seu estilizado espaço gourmet, chamado Mercado da Quinta. Os gelados, os iogurtes, o queijo e a carne, todos com a chancela da marca-mãe (Quinta dos Açores), já chegaram a Lisboa, via El Corte Inglés – e, já agora, via igualmente Espaço Açores, na Baixa -, onde colecionam elogios e clientes. E em breve espera-se que estejam também em países tão diversos como os EUA e o Canadá, Espanha e o Brasil, Angola e Cabo Verde.

É impressionante como a mesma imagem, o mesmo terreno, o mesmo verde e o mesmo azul continuam a deslumbrar-nos todos os dias.

Francisco Helvídio Barcelos nasceu em São Bartolomeu, então apenas uma freguesia rural do concelho de Angra, mas criou as filhas em São Bento, não muito longe do lugar onde veio a instalar as suas empresas. Contígua à cidade, a zona permanecia no entanto profundamente verde, e foi nessa paisagem bucólica que Telma e Helga (e depois Diana) cresceram. Chegavam da escola, calçavam as galochas (ou botas de cano, como se diz nas ilhas), punham os bonés com as palas viradas para trás, passavam a tarde a tratar dos animais e, depois, ainda traziam de volta uns quantos ao colo, para lhes fazerem companhia enquanto estudavam. «Parece um quadro demasiado romântico, mas não é», explica Telma. «Adoramos a terra e nunca nos cansamos de olhar para os terrenos, para o mar, para os animais, para a natureza em geral. É impressionante como a mesma imagem, o mesmo terreno, o mesmo verde e o mesmo azul continuam a deslumbrar-nos todos os dias.»

Durante anos, ela e a irmã – com a cumplicidade da mãe, Maria José, que hoje ajuda no Mercado da Quinta e no restaurante/geladaria – desenvolveram relações quase maternais com as vacas lá de casa: a Feira, a Rainha, a Bianca, a Pombinha, a Coreana, a Ferrari, a Morena, a Quieta. Esta última, criada praticamente em casa desde o nascimento e recordada como a mais dócil de todas, é hoje a imagem de marca do grupo empresarial que vieram a erguer. A ideia foi transmitida à Santa Fé, a agência que criou e gere a comunicação da Quinta dos Açores, e aceite de imediato. Uma vaca igualzinha à Quieta foi esculpida em gesso e pintada com as mesmas cores e manchas da original. Está à entrada do edifício da quinta e as crianças fazem-se fotografar em cima dela, abraçando-a, rindo. Um clube pedagógico foi batizado com o seu nome – e o respetivo desenvolvimento, que passa por livros de colorir e merchandising diverso (mas não só), é precisamente uma das próximas etapas do projeto a desenvolver, no que ao mercado local diz respeito.

O resto da história vai dos concursos de beleza ganhos pelas vacas da produção familiar aos prémios já conquistados pela marca Quinta dos Açores, por exemplo, nos domínios do packaging de carne fresca. Mas conta sobretudo de uma e a mesma coisa: profissionalismo. «Ao longo dos anos, nos Açores, perderam-se grandes oportunidades de marcar a diferença. Por desconhecimento ou por receio, ficou muita coisa por fazer. Nós acreditamos que, como dizia o poeta terceirense Emanuel Félix, “a insularidade não pode servir de desculpa para a mediocridade», explica Telma. «No mais, todas as vezes que nos disseram que não íamos conseguir fazer alguma coisa, ou que corríamos o risco de fracassar, foi aí que nos saímos melhor. Tudo se faz com coragem, perseverança e tempo.»

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